São Paulo, sábado, 09 de agosto de 2008
Você vai assistir à Olimpíada de Pequim?
NÃO
Não vou ver as competições...
RUBEM ALVES ensinou no Departamento de Educação Física da Unicamp sobre um professor português que tinha uma tese curiosíssima sobre o atletismo. Ele dizia que o atletismo faz mal à saúde. Para provar seu ponto, perguntava: "Você conhece um atleta longevo? Quem vive muito são aquelas velhinhas sedentárias que tomam chá com bolo no fim da tarde". Florence Griffith Joyner, corpo fantástico, só músculos, a mulher mais rápida do mundo, deteve por dez anos os recordes mundiais dos 100 m dos 200 m. Dedicou toda a sua vida ao atletismo. Era o símbolo máximo da beleza olímpica. Um infarto a matou. Os animais não competem. Não têm interesse em saber qual é o melhor. Se eles pulam e correm, o fazem pelo puro prazer de pular e correr. Minha cachorra Luna, é só soltá-la num campo aberto para que se transforme numa flecha. E eu fico a contemplá-la, assombrado pela performance do seu corpo que nunca fez atletismo. Por que ela corre? Não é para pegar um coelho. Se corresse para pegar um coelho, sua corrida teria um objetivo prático, racional. Nem corre para provar que é mais rápida que outro cachorro. Se fosse esse o caso, estaria sendo movida pela mais pura motivação olímpica. Numa Olimpíada, nenhum atleta executa sua atividade pelo prazer de executá-la. Cada atleta executa a sua coisa para provar-se o melhor de todos. O prêmio que o atleta recebe por sua performance não é algo que acontece com o seu corpo, como é o caso da minha cadela que corre pelo prazer de correr. O seu prêmio é algo abstrato, fora do corpo, medido por números. O atleta só fica feliz quando a fita métrica ou o relógio dizem que a sua marca foi a melhor. Observe os corpos das nadadoras. São máquinas especializadas numa só função, treinadas por anos para derrotar a água. Pois não é isso que são as provas de natação? Numa competição de natação, a nadadora luta contra a água. A água, sua inimiga, resiste. Ganha a atleta que ficar menos tempo dentro da água. O prazer da nadadora não está na água; está no cronômetro. O sentido original da palavra "estresse" pertence à física, no campo da mecânica aplicada. Para determinar a resistência de um material, é preciso submetê-lo a "estresse", isto é, a forças, até o ponto de ele se partir. O ponto em que ele se parte é seu limite. A competição é essencial ao atletismo porque é só por meio dela que se podem fazer comparações. Comparo vários materiais para determinar sua resistência. Comparo vários atletas para ver qual tem o melhor desempenho quando submetido ao estresse máximo. O corpo de Florence Griffith Joyner não agüentou. Arrebentou como um fio arrebenta se seu limite é ultrapassado. Se o atletismo é isso, a tese do professor de educação física a que me referi acima está justificada. A competição é uma violência a que o corpo é submetido. A imagem mais terrível que tenho dessa violência é a da corredora suíça, ao final de uma maratona, algumas Olimpíadas atrás [Los Angeles, 1984]. Chegando ao estádio, o corpo dela não agüentou. Os ácidos e o cansaço o transformaram numa massa amorfa assombrosamente feia. Ele não queria continuar; desejava parar, cair. Mas isso lhe era proibido: uma ordem interna lhe dizia: obedeça, continue até o fim. Ninguém podia ajudá-la. Se alguém o fizesse, ela seria desclassificada. O locutor, comovido, louvava o extraordinário espírito olímpico daquela mulher. Ele não compreendia o horror daquilo que ele considerava sublime. A competição, representada no seu ponto máximo pelas Olimpíadas, é o oposto do brinquedo. O brinquedo é uma atividade feliz. Por sua vontade, o corpo não competiria. Ele brincaria. O corpo não gosta de competições e Olimpíadas porque elas existem sobre o estresse. E o estresse faz sofrer. Os atletas sofrem. Basta observar a máscara de dor nos seus rostos. O corpo vai contra a vontade, empurrado por um tipo que mora dentro da sua alma e que é dominado por uma obsessão narcísica. Todo pódio é uma celebração do narcisismo. O que o espírito olímpico deseja é levar o corpo aos limites do estresse. E o limite do estresse é a morte. Não vou ver as competições. Mas vi o espetáculo maravilhoso da abertura. E verei o vôlei das meninas. E a ginástica. Porque é bonito...
RUBEM ALVES, 74, psicanalista e escritor, é professor emérito da Unicamp e colunista da "Folha". É autor, entre outras obras, de "Por uma Educação Romântica".
((( "arrebentou"...?? quem sou eu, para corrigir.... ... já deve ser consequência do tal do Acordo!!! ;-)) )))
SIM
A Olimpíada é a vida - melhorada
MOACYR SCLIAR
VOU, SIM , assistir à Olimpíada (pela tevê, naturalmente). Vou torcer por nossos atletas. Vou vibrar e sei que, em alguns momentos, vou me emocionar. Por quê? De onde tiro essa certeza, que é a de milhões de pessoas em todo o mundo? No meu caso, a resposta está num nome, hoje pouco lembrado: Abebe Bikila. Etíope, ex-pastor de ovelhas e depois militar, foi o primeiro atleta a vencer duas maratonas olímpicas e é considerado por muitos o maior maratonista de todos os tempos. Bom, vocês dirão, grandes atletas existem, isso não chega a ser novidade. Mas Bikila era diferente. Esse homenzinho pequeno, magro, franzino, nascido em um dos países mais pobres do mundo, assombrou o público na maratona de 1960, em Roma, porque correu pelas ruas da cidade eterna descalço. Isso mesmo, descalço. E, descalço, ele chegou quatro minutos antes do segundo colocado; descalço, declarou que poderia correr mais dez quilômetros sem problemas. Na maratona seguinte, em Tóquio, ele convalescia de uma cirurgia de apêndice realizada cinco semanas antes. Mas correu, e novamente venceu. Dessa vez teve de usar tênis por imposição dos juízes. E só não venceu a terceira maratona, na Cidade do México, porque, depois de correr 17 quilômetros, fraturou a perna esquerda e teve de desistir. Uma outra e irônica tragédia o aguardava. Em 1969, dirigindo o carro que ganhara do governo, teve um acidente que o deixou paralisado do pescoço para baixo. Os pés o consagraram, um automóvel foi a sua nêmese, o instrumento de sua desgraça. Olimpíadas são eventos mundiais. Conotações sociais, políticas, ideológicas são inevitáveis; boicotes e até atentados (Munique, 1972: 11 atletas israelenses mortos por terroristas) podem ocorrer. Já em 1936, Hitler tentara transformar a Olimpíada de Berlim num vasto espetáculo de propaganda nazista. Mas algo estragou, ainda que parcialmente, o deleite dos arianos: o fato de o atleta americano Jesse Owens ter ganho quatro medalhas de ouro nas provas de corrida. Como Abebe Bikila, Jesse Owens era negro; neto de escravos, filho de um humilde trabalhador agrícola. Bikila e Owens não foram, e não são, casos isolados. Para milhares de jovens, inclusive e principalmente no Brasil, o esporte, e sobretudo o esporte olímpico, é o caminho da auto-afirmação, da restauração da dignidade pessoal. E o instrumento para isso é aquilo que o ser humano possui de mais autêntico: o próprio corpo. É o corpo que tem de responder ao desafio. Na verdade, o atleta não está só competindo com outros; está competindo consigo próprio. Está pedindo a seu tronco, seus braços, suas pernas, seus músculos, seus nervos que o ajudem a mostrar aos outros o que ele vale. Quando o peito do corredor rompe a fita na chegada da prova, não se trata apenas de uma vitória mensurável em minutos e segundos. Trata-se de libertação. É o momento em que a pessoa se liberta da carga pesada representada por um passado de pobreza, de privações, de humilhação. Vocês dirão que o esporte não corrige as distorções, não redistribui a renda. Mas corrige distorções emocionais e sociais, representadas pelo preconceito; e redistribui auto-estima. É pouco? Talvez seja, mas é um primeiro passo. E nós? Nós, os espectadores, sentados em nossas poltronas, diante da tevê? Para nós, a Olimpíada é igualmente importante. Não só porque representa um puxão de orelhas no sedentário ("Puxa vida, está na hora de eu começar a caminhar pelo parque", coisa que ajuda a saúde pública, mas também porque, de algum modo, participamos no que ocorre nos estádios. Sabemos que a vida é dura, cheia de problemas. Mas então pensamos no Abebe Bikila correndo de pés descalços sobre as pedras de Roma. Pensamos no que são as solas daqueles pés, enrijecidas por anos de caminhada e corrida sobre pedregulhos, sobre áspera areia, sobre espinhos. São um símbolo de resistência, esses pés. São pés que, transportando gente humilde, levam-nas longe no caminho da esperança, fazem-nas subir ao pódio de onde se pode, ao menos por um momento, divisar novos horizontes.
*MOACYR SCLIAR*, 71, médico e escritor, é membro da Academia Brasileira de Letras e colunista da *Folha*. É autor, entre outras obras, de "O Texto, ou: A Vida". Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
... sem comentários. Mas ... irresistível! :-{
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