domingo, março 12, 2006

A POESIA NAS COISAS E A POESIA DAS COISAS
O poeta Neruda e o carteiro Mário

Estimulado pelo poema, Mário percebe que não agüenta mais ser apenas um homem comum que vive apenas ao sabor do que lhe acontece.
Sem dúvida, a vida se compõe de tudo o que acontece ao sujeito. Mas, um exame, mesmo superficial desse assunto, mostra que nela também se inclui tudo que o indivíduo faz. Por isso, sem a criação de um objetivo não se realiza nada de realmente válido e marcante. Desse modo, a vida verdadeira não é feita de uma série de atos encadeados e sem finalidade. Sempre se faz algo por alguma razão. Isto é inevitável, pois faz parte da natureza humana mesma. Assim, Mário rejeita as várias vidas possíveis oferecidas pelo ambiente, e decide um novo objetivo que é ser poeta.

Mas, o que é um poeta, o que é a poesia?
A palavra poesia vem do grego poesis, substantivo derivado do verbo poieô que indica a ação de fazer. O termo poieô é tomado nas seguintes acepções:
1- fabricar, confeccionar.
2- criar, produzir.
3- fazer nascer, causar.
4- buscar, investigar.
5- fazer por si, fazer segundo seu gosto.
6- criar por si, fazer a si mesmo.
7- apreciar, julgar.

Poiesis (poesia) é, portanto a ação que lhe corresponde. E, poietes que é o realizador dessas ações tem os seguintes significados: autor, criador, inventor, fabricante, artesão. O poietés realiza a poiesis porque é poietikós e esta palavra tem as seguintes acepções: que tem a virtude de fazer; quem é inventivo e engenhoso; o que é próprio da poesia.
Aquilo que o poietes produz, porque é ele mesmo poietikós e realiza poiesis, é o poiema. Poiema tem as seguintes acepções: o que se faz; a obra, os atos da criação do espírito, invenção.
Se poiesis é o ato de fabricar, produzir e criar, o primeiro e maior dos poetas é, sem dúvida o primeiro a criar, ou seja, o Ser Supremo: infinito, sem começo nem fim, fonte e origem de todas as coisas, eterno, antigo nas eras, em suma, o realizador do poema da criação. Para certas tradições, Ele é o Artesão que junta e confecciona o cosmo a partir do caos. Desde este ponto de vista, a criação como um todo é um ato poético: um poema. A criação é poema na flor que se abre, no rimo das ondas que batem na praia, no próprio ser humano ou, ainda e mais, no encadeamento das histórias de todas as vidas. Tudo isso é construção do Grande Poeta. A criação do Ser Supremo é absoluta porque o que ele cria era antes nada, e é por seu poder criador que cada coisa começa simplesmente a ser. Como o Ser Supremo é a origem e fonte de todos os seres finitos, e cada ser é em última instância um modo d'Ele se manifestar, cada ser no seu nível se torna um poema e um símbolo capaz de remeter a Ele, o simbolizado último.
Mas, a criação de um ser finito distingue-se da do Ser Supremo porque ela consiste em dar forma a um conjunto de possibilidades que já são, que já existem. Dito de outro modo, a criação do ser humano resume-se em dar novas significações e expressões às coisas já existentes, ou estruturá-las em novas totalidades. Quando o ser humano cria, as coisas começam a ser outras, diferentes do que antes eram; ou seja, realiza-se o aperfeiçoamento de uma possibilidade, que ainda não era plenamente e que naquele instante passa a ser. Esse maravilhoso momento em que o possível se torna ato é poesia. Nesse sentido o poeta é um criador, pois ele cria novos seres com os que já existem. Por isso, existe uma analogia entre a poesia e a criação divina.
Mas, observem que existe uma gradação das perfeições nas coisas. Assim, uma planta é mais perfeita do que uma pedra porque a planta tem a perfeição da vida que falta na pedra. O animal é mais perfeito que a planta porque tem, por exemplo, a perfeição da sensibilidade e da locomotividade, de que está privada planta. E, por fim, o ser humano é o mais perfeito de todos, porque, além dessas perfeições, tem a da racionalidade do seu entendimento. Portanto, porque há mais ou menos perfeição nas coisas, há mais ou menos poesia nelas.
Esta exposição enfoca a poesia objetivamente, como algo que está nas coisas. No entanto, é fácil perceber que para captar o poético das coisas é necessário o funcionamento de uma inteligência, que poderá percebe-lo com mais ou menos intensidade. Portanto, decorre daí a existência de dois tipos de poesia.
Existe a poesia in re, poesia na coisa, com sua gradação.
Mas, existe, também, a poesia da coisa: aquela apreendida proporcionalmente à capacidade de entendimento e sensibilidade daquele que pode entende-la. Dentre os personagens do filme, Dona Rosa, a tia de Beatriz, é exemplo claro da pessoa incapaz de perceber a poesia que há nas coisas, enquanto outros existem que desvelam o poético e o captam imediatamente numa intuição simples, como Mário. Descobrir e desvelar o que há de poético nas coisas é missão do poeta, que cria poemas em si e a partir de si mesmo, ao captar o que de poético nelas existe.
Vejam que ao grau de poesia que há nas coisas corresponde uma gradação de poesia que há no poeta. Decorre então, que a criação de um poeta pode ter mais ou menos poesia, ou seja, ele pode ter mais ou menos capacidade poética. Relembro que a imaginação criadora é a base da capacidade poética para construir novas estruturas ou captar seus novos significados.

Se existem duas poesias, existem, também, dois tipos de poetas criadores correspondentes a elas: o poeta nas coisas e o poeta das coisas.
Existem duas cenas no filme que, no meu entendimento, expressam de modo evidente os conceitos expostos anteriormente, e ao mesmo tempo distinguem e identificam os dois tipos de poeta.
Na primeira cena, na porta da casa de Neruda, este explica o que é metáfora, através de uma comparação, quando pergunta a Mário como ele entenderia uma frase onde se dissesse que o céu estava chorando. Mário que é um poeta nato afirma imediatamente que se trata de uma imagem para chuva. Note-se, e guarde-se para uso futuro, que o poeta está interessado em ensinar a seu discípulo a feitura de metáforas. Conceito para o qual sua atenção espontaneamente se volta e que ele exerce magistralmente, sem nenhuma dúvida.
Na segunda cena, a mais importante, e que se passa à beira-mar, Neruda declama e pergunta a opinião de Mário sobre esse poema:

Aqui na ilha há tanto mar,
O mar e mais o mar.
Ele transborda de tempo em tempo.
Diz que sim, depois que não,
Diz sim e de novo não.
No azul, na espuma, em galope
Ele diz não e novamente sim.
Não fica tranqüilo, não consegue parar.
Meu nome é mar ele repete
Batendo numa pedra, mas sem convencê-la.
Depois com as sete línguas verdes
De sete tigres verdes, de sete cães verdes,
De sete mares verdes
Ele a acaricia, a beija e a umedece;
E escorre em seu peito
Repetindo seu próprio nome.

Mário diz que está enjoado e Neruda considera esse julgamento muito severo. Mário explica, então, que seu enjôo não foi causado pela qualidade do poema, mas antes porque se sentiu, enquanto o ouvia, jogado de um lado para o outro, como um barco, sacudido pelas palavras. Neruda, bom professor, não perde a oportunidade e mostra que ele fez uma metáfora. No entanto, Mário retruca:
- "Mas, fazer metáfora assim, não vale. Foi sem querer".
Neruda: - "Querer não é importante. As imagens devem surgir espontaneamente". Mário: - "Você quer dizer que o mundo todo, o mar, o céu com a chuva, as nuvens... o mundo todo é, todo ele, metáfora de alguma outra coisa?"

A pergunta que Mário fez é típica do ponto de vista em que naturalmente se coloca um poeta nas coisas. Com essa questão ele demonstra sua capacidade poética para ver nas coisas exteriorizadas o simbolizado do qual elas são os símbolos. Ele já detém, portanto, a arte de penetrar além dos símbolos até atingir os simbolizados, e chega mesmo, com essa pergunta, a referir-se ao simbolizado último, o Ser Supremo e Criador. A pergunta dele ensina que todas as coisas simbolizam porque sugerem, apontam ou assinalam a Verdade, a Beleza ou a Bondade. E, assim como há o poeta que capta uma beleza, uma verdade e uma bondade das coisas para nós, existe aquele que capta a Beleza, a Bondade e a Verdade nas coisas em si mesmas. É o primeiro que denomino aqui poeta nas coisas, Mário; enquanto chamo o segundo poeta das coisas, Neruda.
Observem que todo o comportamento de Neruda nessa ocasião indica, claramente, ser ele um poeta das coisas, porque com uma cara estranha, responde que não sabe e que precisa refletir mais sobre o assunto. Neruda tem que pensar sobre a questão porque ele faz e entende de metáforas enquanto a pergunta trata de símbolos. A interrogação de Mário não pode ser respondida nem mesmo compreendida com o uso desse conceito, porque metáfora é apenas o emprego de palavra ou expressão em sentido figurado que consiste na transferência de uma palavra para um âmbito semântico que não é o do objeto que ela designa, e que se fundamenta numa relação de semelhança, subentendida "num mesmo nível", entre o sentido próprio e o figurado. A metáfora, natural em Neruda, opera por similitude, enquanto o símbolo o faz por analogia de atribuição intrínseca. No fundo Neruda capta as metáforas e Mário os símbolos, cuja função é interligar níveis diferentes de realidade.
Tudo isso demonstra que Mário tem a capacidade de exercer uma forma de poesia muito profunda e original, que lida, na verdade, com símbolos, como indica a pergunta que ele colocou, pois é o símbolo que permite conhecer de um modo mais profundo, e além da aparência sensível, as coisas que ele apenas sugere. Conseqüentemente, Mário não se limita a ver no poético das coisas as metáforas ou mesmo somente os símbolos; ele penetra nelas e vai mais além da mera aparência sensível, para enxergar ali os simbolizados aos quais elas se referem.
Plotino dizia que sábio é aquele que por trás de uma coisa vê uma outra. Neste sentido Mário é um sábio. Ele vê sob a escritura das coisas Aquele que as escreveu. Ele sente alguma outra coisa. Para o poeta nas coisas tudo é sagrado e a criação inteira é símbolo. Ele percebe a poesia in re, ele faz o poema na coisa; mesmo que não tenha o domínio erudito e técnico das regras de semântica, da sintaxe ou do vocabulário que Neruda possui. Por isso o poema mais fundamental, o mais radical, o mais importante que o poeta nas coisas pode e deve criar é a vida singular que ele inventa para si mesmo.
Mário faz poemas nas coisas, lidando diretamente com elas, como quando relaciona a bola do jogo de futebol de mesa com a Lua, e faz seu primeiro poema, um círculo desenhado. Cena belíssima e muito importante, pois descreve o conceito de símbolo através da bola que interliga, a Lua, a mulher celeste e arquétipo do feminino, com a curva da boca de Beatriz Russo, a mulher terrestre. Desse modo, Mário faz poemas o tempo todo; espontâneos, compostos dos gestos simples do quotidiano, experimentados diretamente nas coisas e transfigurados por uma alma predisposta à compreensão simbólica.
Isto não quer dizer que Neruda, o poeta das coisas, desconheça esse tipo de poesia, pois ele mesmo afirma para Mário:

"... quando explicamos a poesia ela se torna banal. Melhor do que qualquer explicação é a experiência direta das emoções, que a poesia revela a uma alma predisposta para compreendê-la".

E acrescenta:

"Ser poeta é ser capaz de olhar as coisas. Vá caminhando pela praia observando tudo".

Cid de Oliveira (astrólogo)

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